Equador: o processo continua

À medida que a situação no Equador parece tranquilizar-se nas ruas, depois do acordo forçado polas comunidades indígenas com o governo de Lenín Moreno, e ao tempo que os meios de comunicação apresentam os protestos como terminados e a crise como superada, subsistem vários elementos que interessa revisar.

1. Os protestos foram motivados por um pacote de medidas anunciado polo governo — Decreto 883 — que incluía, entre outras, a retirada de subsídios aos combustíveis. A suba, que afectaria especialmente aos preços do combustível diesel (+120%) e da gasolina (+30%), teria um impacto indirecto, mas imediato, nos preços de bens de consumo e serviços. A CELAG calculou que, como consequência, à volta de 300mil equatorianos e equatorianas passariam para baixo do nível de pobreza, só por causa dos efeitos inflacionários. Porém, não se tratava apenas do custo dos combustíveis. No pacote acordado com o Fundo Monetário Internacional — um dos principais agentes de desestabilização no mundo e, em particular, na América Latina — estavam incluídas as habituais reformas laborais e tributárias — incluídos cortes selvagens de salários e períodos de férias — que sempre acompanham os seus empréstimos e que têm como objetivo moldar a economia de países inteiros em crise para a tornar mais facilmente assimilável polo grande capital transnacional. Precisamente a América Latina tem um longo histórico de processos deste tipo, todos com o mesmo resultado e os mesmos atores: enfraquecimento das economias nacionais, empobrecimento geral, aumento escandaloso da desigualdade, dolarização acelerada, etc. No caso do Equador, as medidas tinham sido simplesmente anunciadas, e no momento das negociações que acabaram por derrogar o Decreto 883, os pormenores acordados entre o governo e o FMI ainda não eram conhecidos, segundo denunciaram as próprias organizações indígenas.

2. O governo e os meios de comunicação que dão suporte a Lenín Moreno desde que iniciou a carreira por cancelar ou reverter os avanços da época da Revolução Cidadã acusaram o «correísmo» de estar por trás dos protestos com o objetivo de desestabilizar o país e preparar o terreno para as vindouras eleições de 2021. Acusam o movimento de violento e de instigar uma «rebelião» para cortar a ordem constitucional. Contudo, parece que a situação de crise social tenha uma importante parte de responsabilidade em enviar milhares de pessoas para as ruas e praças por todo o país, principalmente nas áreas com maior presença de população indígena, que é a mais empobrecida. Esta situação de crise social só se explica a partir das políticas de austeridade, redução dos serviços públicos e desinvestimentos aplicadas polo governo desde a vitória eleitoral há dous anos e meio. Em concreto, nos últimos 30 meses, enquanto a principal resposta de Moreno à deterioração das condições de vida era invocar a «pesada carga» da etapa anterior, o seu governo tem eliminado impostos à oligarquia, ampliado as vias para a evasão fiscal, desativado as taxas alfandegárias que protegiam a economia do país, aprovado reformas de «flexibilização» do mercado de trabalho e eliminado mecanismos de regulação do mesmo. Portanto, existiam condições materiais para os protestos, e não é necessário recorrer a conspiração nenhuma para explicá-las. Dado que estas condições tampouco se limitavam ao Decreto 833 — que em todo caso funcionou como catalisador ou como isca —, os protagonistas da revolta tampouco se limitaram aos partidários ou partidárias de Correa ou às organizações indígenas. Os protestos foram muito mais plurais do que o governo e os grupos afins estão dispostos a reconhecer. Quanto a isto último, se é verdade que militantes e ativistas do «correísmo» participaram ativamente das mobilizações na rua, e na sua difusão, também o é que as organizações indígenas que tomaram finalmente a iniciativa e dirigiram a negociação posterior têm a sua própria folha de rota — com uma profunda raíz popular — e capacidades sobradas para a decidirem por si próprias, sem tutelagem.

3. A chegada de Lenín Moreno ao poder não se produziu como consequência de uma votação favorável do programa que aplicou desde a sua nomeação. Por outras palavras: ninguém escolheu Lenín Moreno para aplicar medidas neoliberais e destruir os avanços da época anterior; nem para propor a saída de UNASUL (a sede do seu secretariado está precisamente em Quito) e a adesão a uma PROSUL claramente alinhada com os Estados Unidos; nem para aderir ao Grupo de Lima, formado para coordenar a pressão diplomática contra a Venezuela; nem para entregar o poder sobre as políticas internas e externas á embaixada de Washington no país (até 27% da população considera que é esta embaixada concreta que dita as políticas no Equador). O programa de Lenín Moreno apresentado ao público antes das votações era uma clara continuação da «Revolução Cidadã», e, portanto, a percepção social da sua figura como a dum traidor às suas ideias — ou como um oportunista — está já amplamente estendida. Mesmo antes do início destes protestos. Contudo, as enormes contradições entre as palavras e os feitos tampouco lhe garantiram o apoio real da direita equatoriana nem dos grupos de poder económico, e só de maneira parcial e momentânea o apoio dos principais meios de comunicação. Como resultado desta crise e da sua nefasta gestão, as principais figuras da direita neoliberal, como Jaime Nebot, que aspira à eleição em 2021, pretendem afastar-se de Moreno para não verem danadas as suas campanhas — que já começaram. O resultado é que Moreno continua a ocupar a cadeira presidencial, mas sem qualquer peso político real e sem hipótese de o vir a ganhar no futuro. Os chamados a adiantar as eleições gerais (morte cruzada e artigos 130 e 148 da Constituição de 2008), portanto, não desapareceram com o fim dos protestos, mesmo que agora se expressem por outra via.

4. O referido fim dos protestos, principalmente a partir do anúncio da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE), limita-se ao acordo forçado com o governo para cancelar o Decreto 883 e à criação de uma comissão que elabore um novo texto que evite que os subsídios se destinem aos grupos de maiores recursos económicos ou favoreçam o contrabando. Nesse sentido, as exigências iniciais e imediatas da mobilização ficam satisfeitas — à espera de se concretizar o novo decreto —, mas não assim as que nasceram durante as jornadas de mobilização e os enfrentamentos com a polícia — que deixaram oito vítimas mortais, mais de 1.300 pessoas feridas e mais de mil detidas. Nem muito menos o resto de exigências que vinham de mais atrás e que estão relacionadas com a implantação da agenda neoliberal. Convém notar que a justificação das próprias comunidades indígenas às mobilizações era mais ampla e mais profunda do que a questão dos combustíveis, e que todo o que não seja isso ficou fora da negociação. Por esse motivo, a oposição de esquerda carateriza o fim dos protestos como «paz temporária» e lembra que o acordo com o FMI continua a vigorar noutros pontos. Alguns processos desse tipo, como por exemplo a privatização do Banco del Pacífico, o segundo maior banco do país, nem sequer foram afetados polos protestos e continuam o seu curso sem novidade.

5. Depois das celebrações pola momentânea vitória popular, em que convém notar a essencial participação das mulheres em todos os níveis (logístico, dirigente e na primeira linha dos enfrentamentos), a repressão tem continuado no Equador em forma de detenções e perseguição de algumas das figuras públicas mais críticas. Em particular a presidenta da câmara municipal de Pichincha Paola Pabón (detida), a deputada na Assembleia Nacional Gabriela Rivadeneira (asilada), e o comunicador e ativista social de Bulla Zurda Christian González (detido). Todos eles ligados ao Movimiento Revolución Ciudadana, o movimento político que agrupa o chamado «correísmo». A caça às bruxas é uma realidade neste momento e não parece que se vaia deter. Exige, portanto, a atenção da solidariedade internacionalista.

6. Por último: a fase de protestos no Equador deve ser entendida como resposta popular frente a um programa que vai muito além das fronteiras do país, e que tem uma essencial e incontornável origem globalista. Depois de uma série de derrotas na chamada «década progressista», o imperialismo fixa de novo o seu objetivo sobre o continente, com novas forças que lhe permitiram algumas vitórias, de Honduras ao Brasil, da Argentina a Paraguai ou a Haiti — com enormes resistências populares. Noutros lugares, como a Venezuela, Cuba, Nicarágua ou Bolívia as forças progressistas e as revoluções conseguem, por enquanto, resistir o ataque permanente, os bloqueios, a violência patrocinada, a ameaça de intervenção armada, etc. A luta popular no Equador, mesmo que incendiada a partir de um corte nos subsídios dos combustíveis, ecoa nesses processos abertos e tem também um valor continental.

7. Em resumo, por mais que os grandes meios de comunicação equatorianos e globais respirem com alívio, o processo político em Equador não terminou: a «vitória» anunciada só se pode considerar momentânea e pontual, mas não suficiente. A implementação do decreto que substitua o 833 ainda não foi efetivada e, em consequência, as bases sociais continuam mobilizadas e à expetativa. No seio das comunidades indígenas há agora mesmo, com efeito, um profundo debate a respeito de se o anúncio do acordo pode ser suficiente para desconvocar os protestos, que foi a decisão tomada por uma parte da direção da CONAIE e imposta a toda a diversa oposição que se manifestava, ou se se trata de um passo em falso. No entanto, a repressão continua, não em larga escala, mas sim contra quadros e dirigentes sociais selecionados, em especial contra o setor que foi deixado à margem da negociação. E as grandes linhas mestras do acordo com o FMI e do programa neoliberal de Moreno continuam intactas. Mas os doze dias de protestos ensinaram à oligarquia equatoriana — com cópia para o FMI e os Estados Unidos — que o povo não está disposto a continuar validando e aprofundando as desigualdades e a desintegração da economia do país, quando menos no mais evidente e imediato. E não há um só elemento que impossibilite novos protestos em massa no curto prazo, em particular se os poderes económicos insistem em continuar por essa via. Os inúmeros temas que ficaram fora dos «acordos», e que vão muito além da questão concreta do preço dos combustíveis, apontam no sentido contrário.

— Oscar Valadares. Porta-voz Nacional de Mar de Lumes

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